domingo, 31 de maio de 2015

Etnografia (III) Cruzeiros (I) Arte Rupestre (III)

O Cruzeiro do Alto do Mú (Serra do Caldeirão)

Por todo o país existem fenómenos demonstrativos da religiosidade popular. Um desses fenómenos é o das “Alminhas”, maravilha única[1] que encontramos espalhada no nosso território, de Norte a Sul.
Paralelamente surgem os Cruzeiros. Para além ao seu significado intrínseco (de representação do Cristo crucificado), a sua iconografia varia de local para local, sendo o contexto no qual está implantado, de extrema importância para a sua interpretação.
No Norte, ao Domingo, terminadas as Vindimas, era hábito cantar, dançar, deitar-se as “Vivas” e reinar, junto ao Cruzeiro da Igreja (qual representação totémica da Morte de um Deus, para redenção e celebração da Vida pelos seus seguidores).
Alguns adquiriram o estatuto de Monumento Nacional (como é o caso do Cruzeiro de Tibães, desde 1910). Também podem assumir o estatuto de marcas divisórias territoriais, como é disso exemplo o Cruzeiro do Padrão da Légua, marcação no terreno da separação entre a Via Veteris e a Karraria Antiqua. Em Pombal, mais precisamente no Louriçal, o Cruzeiro / Pelourinho, dos séculos XVI / XVII assume também essa identidade, de vetusto pelourinho, em alusão simbólica à antiga autoridade municipal.
Os Passos da Via Sacra, dos quais são exemplo os da localidade de Selmes, representam simbolicamente essa manifestação de religiosidade, vivida com mais intensidade no Domingo de Ramos (data da entrada triunfal do Cristo em Jerusálem).

O Cruzeiro do Alto do Mú (Serra do Caldeirão)



Croqui do Cruzeiro do Alto do Mú (ou da Mú, como é também conhecido o local)




Neste caso específico, observado em 2007, estamos na presença de uma Cruz de Calvário, executada numa rocha carbonatada. Aos pés na Cruz, no interior da representação do Golgota, surge a data de 1916. Não se encontra muito distante de uma encruzilhada (Alto do Mú – Felizes – Malhão). Marcará o local onde alguém terá falecido (é uma interpretação).

Em Marmorais (Abadim, Cabeceiras de Basto) também encontramos algo de funcionalidade similar, sendo neste caso mais recente e móvel. Marco provável do local de falecimento de FMG (os registos paroquiais do local por certo ajudarão a saber de quem se trataria).
 


Marmorais, Abadim. Durante limpeza da laje móvel
Marmorais, Abadim. Após a limpeza da laje móvel

Croqui da laje móvel. Cortesia da Dra. Marta A. Duarte
De qualquer das formas, aqui fica o registo de ambos, para quem se dedique a estudos mais aprofundados no que a estas temáticas diga respeito.
Poderia ser incluído este Cruzeiro (marca de religiosidade e crença num Deus que protege e salvará as Almas deste Mundo) num qualquer caminho pedestre (a exemplo do BCL-PR1 – Pelos Caminhos do Monte da Saia, que percorre os caminhos rurais entre o Lugar da Póvoa e Remelhe, em Barcelos).

Bibliografia:

·         AGRIPRO, Ambiente Consultores SA (2006): Estudo de Incidências Ambientais do Parque Eólico da Serra do Mú, Lisboa;
·         BERNARDES, João Pedro, et al. (2006): Actas das Ias Jornadas – As Vias do Algarve, CMSBA/CCDR Algarve;
·         CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain: Dicionário dos Símbolos, Editorial Teorema, Lisboa;
·         FERREIRA, Fernando (2007): Parque Eólico da Serra de Mú Estudo Geológico-Geotécnico, Geoárea Consultores de Geotecnia e Ambiente;
·         FRUTIGER, Adrian (2001): Sinais & Símbolos, Ed. Martins Fontes, São Paulo;
·         Gattegno, David (2000): simbolos, Col. ba-ba, Ed. Hugin;
·         GONÇALVES, António J. (2000): Monografia da Vila de Almodôvar, ACDJA (Associação Cultural e Desportiva da Juventude Almodovarense);
·         GUERREIRO, Rui Manuel Cortes (1999): Levantamento da Carta Arqueológica de Almodôvar. Relatório de Estágio Profissional, II vols., CMA / CEFPO;
·         LEAL, Augusto Soares de Azevedo Barbosa de Pinho (1873-1890): Portugal Antigo e Moderno: Dicionário Geográphico, Estatístico, Chorográphico, Heráldico, Archeológico, Histórico, Biográphico & Etymológico de Todas as Cidades, Villas e Freguesias de Portugal e Grande Número de Aldeias, Livraria Editora de Mattos Moreira, 10 vols., Lisboa;
·         LEXIKON, Herder (1990): Dicionário de Símbolos, Ed. Cultrix, São Paulo;
·         Littleton, C. Scott (Editor Geral) (2002): Mitologia, The Illustrated Anthology of World Mith e Contar Histórias, Duncan Baird Publishers, Londres;
·         O'CONNELL, Mark; Airey, Raje:  Sinais & Símbolos, Hermes Casa;
·         OLIVEIRA, Catarina: Paisagens e Patrimónios. Novos Caminhos para os Territórios Rurais. A Experiência de uma Associação de Desenvolvimento Local no Alentejo, In IIº CER. Sub-Tema 4: Usos e olhares: dos recursos ao património;
·         TEIXEIRA, C.; GONÇALVES, F. (1980): Introdução à Geologia de Portugal, INIC, Lisboa;
·         VALENTE, Marco Paulo (2008): Parque Eólico da Serra do Mú – Relatório Final do Acompanhamento Arqueológico de 30 de Outubro de 2007 a 15 de Maio de 2008, Perennia Monumenta, Famalicão;
·         VASCONCELLOS, José Leite de (1989): Religiões da Lusitânia, 3 vols., INCM;
·         WILLIS, Roy (Editor Geral) (2006): World Mitologia, Duncan Baird Publishers, London

Webgrafia:




[1] “Portugal é o único país que, na sequência do Concílio de Trento (1545-1563), criou os monumentos que são marcas profundas da religiosidade popular.” In http://www.snpcultura.org/vol_alminhas.html, consultado a 31-05-2015, 10:44.
"No cristianismo primitivo só havia Céu e Inferno, a ideia do Purgatório só surgiu na Idade Média, quando a Igreja, na sequência do Concílio de Trento de 1563, o impõe como dogma, numa lógica de resposta católica à Reforma levada a cabo pelos protestantes. Passava assim a haver um estado intermédio para as almas das pessoas que faleciam. E em vez do dualismo do Céu, para os bons, e do Inferno, para os impuros, criou-se um estado intermédio, um local onde durante algum tempo as almas ficariam a purificar", observa o historiador [António Matias Coelho], evidenciando, porém, a forma específica como em Portugal se interpretou as indicações de Trento.” Idem, 10:48.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Fantasmas, vultos e sombras (V)

"Os Espíritos da Estrada Antiga"

Há algumas dezenas de anos atrás, existiam duas Herdades que ocupavam um espaço territorial vasto.
Falamos da Herdade das Coimbrãs e do Monte de S. Luís (onde existem ainda hoje as ruínas de uma capela, que habita as memórias, mesmo das gerações mais novas, pese embora entre estas últimas sejam mais difusas).
Entre ambos os locais existia uma estrada em terra batida, que passava junto a um determinado ribeiro.
Quando as pessoas levavam animais por aquele caminho (cavalos, burros, vacas, ovelhas) esses animais desviavam-se do dito, num certo e determinado ponto.
As pessoas diziam então entre si, que ali haviam espíritos e fantasmas não muito longe desse mesmo ribeiro, o que fazia com que os animais daí se desviassem.
Poderia ter existido uma necrópole no local e esse achado de ossadas por parte de algum popular aliado aos contínuos episódios envolvendo os animais ter motivado tais estórias?
É uma possibilidade.
Recolha efectuada a 14/04/2015.
Informante: José Domingos Pedras Sardinha, 29 anos, nascido em Santiago Maior (Beja) e a  viver actualmente em Baleizão.

Curiosamente (ou não) surgiu não muito longe deste local mais uma necrópole da Idade do Ferro, ladeada por uma posterior Tardo-romana, em trabalhos de acompanhamento arqueológico da nossa responsabilidade.

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Brincadeiras e/ou Jogos de Infância (III)

“Moda da Laranjinha”

Maria Isabel de Gouveia Valente (Foto Lis, Funchal, Junho 1969)

Ainda cheguei eu mesmo a jogar/dançar esta moda com primos e amigos no Arco de São Jorge (Madeira), quando era moço novo, ensinada pela minha mãe.

Os versos que aprendi eram assim:

“A Moda da Laranjinha
É um jogo assim ao lado (x2)
Ponho¯o  meu joelho em terra
Fica o Mundo admirado (x2)

Maria sacode a saia
Manel alevanta o braço (x2)
Maria dá-me um beijinho
Que eu te darei um abraço!” (x2)

Alguns anos mais tarde, melhor dizendo, recentemente, ao observar o Belíssimo Programa “O Povo Que Ainda Canta”, realizado por Tiago Pereira, verifiquei que esta moda apenas variava em alguns aspectos da letra, com uma moda cantada por um casal de idosos, os (agora) célebres “Velhos da Torre”, Alte, Loulé[1]. E cantavam os ditos deste modo:

“E a moda da Carrasquinha
É uma moda assim ao lado (x2)
Que se põe joelho em terra
Todo¯o Mundo fica pasmado (x2)”

Buscando ainda mais fundo no baú das memórias, recordei-me de um jogo acerca do qual tinha lido algo há algumas décadas. Encontrei esta pérola, que passo seguidamente a transcrever na íntegra:

Carrasquinha

Este jogo é uma dansa de roda que nos foi descripta por pessoa que a viu dansar a raparigas aldeãs, mas que poderão dansar muito bem as meninas da cidade.
Como nos outros jogos de roda dão-se as mãos formando circulo e gira-se cantando; podem-se empregar diversos cantos em que de espaço a espaço se intercalam os seguintes, caracteristicos do jogo, e que acompanham os movimentos que lhes são particulares:

110        Este jogo da carrasquinha
É um jogo assim de lado
Pondo o joelho em terra
Todo o mundo fica pasmado.

Mathilde, sacode a saia;
Mathilde, levanta o braço;
Mathilde, dá-me um beijinho;
Mathilde, dá-me um abraço.

Dizendo o primeiro verso soltam os jogadores as mãos; dizendo o segundo voltam-se com o braço esquerdo dobrado, tendo a mão sobre o peito, e o cotovelo apontando para o peito da que fica à esquerda; dizendo o terceiro verso põem um joelho em terra e dobram-no simplesmente; dizendo o quarto levantam-se; dizendo o quinto dão uma volta completa, cada um por si, fazendo gesto de sacudir a saia; dizendo o sexto levantam o braço direito; dizendo os dous ultimos, duas a duas aproximam as frontes, tomam-se pela cintura e cada par dá uma volta, terminada a qual dão as mãos de novo, continuando a dansa de roda.”
 In, COELHO, F. Adolfo (1919): Jogos e Rimas Infantis, Companhia Portugueza Editora, Bibliotheca de Contos para Creanças, 2ª Edição, Porto

“Malvado” do Tiago Pereira, que me faz ir buscar estas coisas ao baú das memórias…
Bem hajas companheiro viajante, bem hajas sempre.



[1] No século XVI, a população local da freguesia do Arco de S. Jorge (Madeira), era proveniente de Portugal Continental, nomeadamente do Minho e do Algarve. Ter-se-iam assim entrecruzado estas influências, assimilando todo este processo de aculturação? Fica a questão para os Filólogos e demais colegas estudiosos destas problemáticas interessantíssimas, a meu ver.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Nós Ossos que aqui Estamos…

Mesmo na hora da morte podemos observar diferenciação social. Uma das formas de o fazer é através da observação das lápides de sepulturas que podemos efectuar em alguns cemitérios.
Num primeiro exemplo, podemos observar no campo epigráfico a seguinte leitura:

D[escanse]E[m]P[az]A[mem]
AQUI JAZ
FRAN[CIS]CO ROSA
CAMPANIÇO FALLECEU
EM 8.5.911 COM 73 ANNOS
DE EDADE ETERNA
RECORDAÇAO DE SUA
FILHA MARIA DA
CONCEIÇAO ROSA
ESTAMENHA
É dado destaque à data da sua morte, mas não à do seu nascimento. Encontra-se este epitáfio gravado em relevo sobre o mármore de uma sepultura, agora esquecida e abandonada, pois o tempo tudo apaga, menos o desejo do eterno descanso para o ente querido que partiu.
Não muito longe desta lápide, encontramos, gravado de uma forma mais humilde, o próximo epitáfio. Falecimento ocorrido cerca de 9 meses antes.
Neste podemos ler o seguinte:

AQUI JAZ
MIGUEL
PIRES
FALECEU
EM 12-8-
-1910-
Nesta não sabemos quem a mandou executar, nem se tinha familiares vivos à altura para o fazer. Apenas sabemos que Miguel Pires ali jaz e a data do seu falecimento.
De uma coisa temos todos a certeza (pelo menos nos nossos tempos e enquanto se não inventar o elixir da eterna juventude), quando nascemos um dia iremos falecer.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Etnografia (II) Vias Antigas (I)

Via do Cerro da Quinta

Em trabalhos que efectuamos entre os meses de Outubro de 2007 e Maio de 2008, pelas encostas da Serra do Caldeirão coordenamos, num segundo momento, no terreno o nosso colega arqueólogo Dr. Luís Pedro Castro Vilaça Moura. Decorrente dos seus trabalhos de prospecção conjunta (após formação intensiva inicial em Almodôvar e nas frentes de trabalho das obras) alertou-nos para a presença de uma via antiga, observável ainda nos dias de hoje, devido à erosão que a contínua passagem de carroças pelo local produziram sobre o substracto litológico.
Via antiga (observa-se em primeiro plano o desgaste no substracto litológico)

Junto a uma pequena ribeira, próxima ao Cerro da Quinta observamos então da existência de marcas de rodado de veículos de tracção animal. Este local fica submerso estivalmente. A distância entre as marcas de rodado visíveis andava à volta de 1,50metros. Seguiam uma orientação sensivelmente num eixo NE-SW.
Presume-se que tivessem sido produzidas ainda em época contemporânea, como acesso de carroças a uma pequena quinta e sua respectiva horta, não muito longe do afloramento rochoso onde se observava a dita via.
Os nossos sinceros agradecimentos à empresa de arqueologia Perennia Monumenta, na pessoa do Prof. Doutor Francisco Reimão Queiroga, pela possibilidade de execução de tais trabalhos por este imenso Sul.

sábado, 24 de janeiro de 2015

Etnografia (I) Arqueologia (II) Moinhos (I) Arte Rupestre (II)

"Cerro do Moinho Velho"

Aspecto do elemento estruturado, visto de Norte para Sul



Estrutura de funcionalidade indeterminada pelo que é observável nos nossos dias, mas, muito possivelmente moinho, conforme designação presente na respectiva Carta Militar do local, de planta circular, utilizando o xisto como matéria-prima base de construção.
No eixo EW apresenta um diâmetro de 6,50metros e no eixo NS de 5,80metros. Tem uma altura observável na actualidade entre os 1,50metros e os 1,90metros, desde a base da mesma. Ausência de materiais de qualquer tipo, observáveis macroscopicamente.

Levantamento em manga plástica das gravuras executadas sobre o elemento pétreo

Apresenta um elemento cruciforme gravado sobre uma espécie de globo virado a Este, que passamos a descrever de seguida: 

Levantamento Elemento Cruciforme sobre Globo
Gravura executada por picotagem presente na única pedra de ombreira da entrada, imediatamente acima da soleira que se encontra orientada para o ponto cardeal Este. 
Pormenor da ombreira onde podemos observar o elemento gravado

Representação do culto de São Salvador do Mundo ou sua mimetização posterior[1]? Seja qual tenha sido o motivo era um sinal protector colocado à entrada de uma estrutura, entrada que se encontrava voltada ao nascer do Sol e isso é evidente.




[1] Gostaríamos de apresentar seguidamente uma hipótese visando a execução da gravura em si. Proteção do local (se moinho, serviria para moer grão, com o qual se faria farinha para o pão). Não é raro surgirem elementos cruciformes gravados em vetustas pedras de moinhos, quer de vento como de água, muito pelo contrário.
Apenas um apontamento mais, acerca do culto de São Salvador do Mundo (que poderá aqui estar representado, ou não). Há uma festa que se celebra a 6 de Agosto, do Divino Salvador, São Salvador ou mais simplesmente O Salvador. O episódio da Transfiguração bíblico é o episódio que motiva todas estas representações salvíficas. Com forte conteúdo místico, assinala o ponto culminante da vida pública do Salvador (Jesus=Deus Salva), testemunhado por três dos seus apóstolos (a fazer fé nas escrituras):
“Simão Pedro, servo e apóstolo de Jesus Cristo, aos que, pela justiça do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo, alcançaram, por participação, uma fé tão preciosa como a nossa… Com efeito, não foi com base em hábeis fábulas que vos demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, mas, por termos sido testemunhas oculares da sua majestade. Porque ele recebeu, de Deus Pai, a honra e a glória, quando, do seio da glória magnífica, lhe foi dirigida esta voz: Este é o meu filho muito amado, em quem pus todo o meu enlevo. Esta mesma voz que vinha do céu, a ouvimos, quando estávamos, com ele, no monte santo…” (2 Pe 1,1. 16-18).
O episódio ocorreu num alto monte, não longe do lago de Genesaré que depois foi identificado com o monte Tabor, nas proximidades de Naim. Ocorreu cerca de uma semana após o episódio da multiplicação dos pães e dos peixes.
Na representação, Cristo, revestido de Luz, abre os braços, num gesto que lembra a crucifixão, mas, ao mesmo tempo, aparece suspenso no ar, no acto da Ressureição. O seu culto foi muito divulgado pelo Mundo. Deu nome a um país e a duas cidades (capital de El Salvador e São Salvador da Bahia de Todos os Santos, capital e sede da administração colonial do Brasil até 1763).
Geralmente a sua iconografia consiste no seguinte: Cristo transfigurado, glorioso, com o globo ou sobre o globo, vestes brancas, de mãos estendidas em Cruz e em Glória.

sábado, 17 de janeiro de 2015

Arqueologia (I) Marcos Territoriais (I) Arte Rupestre (I)

Marco da Comenda de S. Clemente (Moita Redonda)[1]

Durante trabalhos que executamos entre Outubro de 2007 e Maio de 2008, pela serra do Caldeirão fomos registando e investigando variadíssimos elementos patrimoniais.
Destes, também um marco territorial mereceu a nossa atenção.
Aspecto do Levantamento do Marco (presumivelmente ainda in situ)

Tratava-se de um marco de delimitação territorial em calcário. Muito possivelmente do Século XVII.
A transcrição é a que segue, uma vez que se assemelha à de um outro marco que Abel Viana e Mário Lyster Franco estudaram e que tinha sido achado em espaços geográficos próximos.

Com pequena espada – presumivelmente da Ordem de S. Tiago ou Espatários – que encima a seguinte inscrição:
:COM:DE / SCLEM
Levantamento Marco Comenda de S. Clemente

Que Abel Viana e Mário Lyster Franco transcreveram como COMENDA DE SÃO CLEMENTE, e dataram como sendo do século XVII, mas de proveniência desconhecida. Este marco possivelmente ainda se encontrará in situ, uma vez que se situa também em zona de fronteira entre S. Barnabé e Loulé (existe um marco contemporâneo em betão a cerca de um metro, de divisão territorial entre Almodôvar/S. Barnabé e Loulé).
Uma leitura atenta de várias fontes levou-nos a concluir o seguinte:
Marco da Colecção Rosa Madeira - Museu Arqueológico Faro
·         a existência de pelo menos um outro marco exactamente idêntico, recolhido por um indivíduo do Ameixial (Sr. Rosa Madeira – presentemente com o n.º 00091 de inventário relativo à colecção deste indivíduo no Museu Arqueológico e Lapidar Infante D. Henrique de Faro), de proveniência desconhecida, mas que muito certamente  viria de uma qualquer localidade ou monte situado nas cercanias e comprovará que existia uma delimitação deliberada e efectiva dos terrenos da dita comenda;
·         apesar dos solos neste local serem relativamente pobres, os locais de implantação e demarcação desta “Comenda de São Clemente” são-nos desconhecidos e poderiam englobar solos aráveis e perfeitamente cobiçáveis situados mais a Sul;[2]
·         o facto de ter representada a Espada da Ordem de Santiago, faz-nos pensar que fosse um terreno da qual a dita fosse possuidora, uma vez que neste espaço geográfico a sua influência foi imensa.

Este marco, para além disso, também é simbólico da divisão geológica dos terrenos da orla terciária e quaternária do Barrocal e do litoral, em contraste com o maciço antigo, os ásperos e ondulados xistos serranos. Muito possivelmente, se forem realizadas prospecções sistemáticas nestes e entre estes locais, outros marcos poderão surgir, quiçá ainda in situ.
Gostariamos de expressar o nosso agradecimento sincero à Dra. Marta Valente (Geóloga e Ilustradora), pelas informações quanto à descrição geológica de diversos locais e pelo tratamento informático em gabinete do levantamento efectuado pela nossa pessoa no local.
Também gostaríamos de aproveitar para agradecer a disponibilidade e amabilidade do Dr. Nuno Beja (Museu Arqueológico e Lapidar Infante D. Henrique, Faro), dos funcionários do Arquivo Histórico Municipal de Loulé, Bibliotecas de Almodôvar e Beja. Ao Dr. Rui Cortes também fica aqui a nossa palavra de agradecimento.

Bibliografia consultada:

·         ENCARNAÇÃO, Pedro Henrique Ferreira (1993): As visitações da Ordem de Sant’iago às igrejas do concelho de Loulé no ano de 1534, Delegação Regional do Algarve da Secretaria de Estado da Cultura, Faro;
·         GUERREIRO, Rui Manuel Gaspar Cortes (1999): Levantamento da Carta Arqueológica de Almodôvar Relatório de Estágio Profissional, II vols., C.M.A., C.E.F.P.O.;
·         LAMEIRA, Francisco I.C.; SANTOS, Maria Helena Rodrigues dos (1988): Visitação de igrejas algarvias da Ordem de S. Tiago de 1554, A.D.E.I.P.A., Faro;
·         LEAL, Bruno (2004): La Crosse et le Bâton. Visites pastorales et recherche des pécheurs publics dans la diocèse d’Algarve 1630-1750, Centre Culturel Calouste Gulbenkian, Paris;
·         MAGALHÃES, Joaquim Romero (1993): O Algarve Económico 1600-1773, Editorial Estampa, Colecção Histórias de Portugal, n.º3;
·         MARTINS, Luísa Fernanda Guerreiro (2004): Memórias Paroquiais do Concelho de Loulé, In Al-uliã, Revista do Arquivo Histórico Municipal de Loulé, n.º 10, Loulé, pp. 387-435;
·         SERRA, Manuel Pedro (Coord.) (1996): Visitação da Ordem de Santiago ao Algarve 1517-1518, Suplemento da Revista Al-uliã, n.º 5, Arquivo Histórico Municipal de Loulé, Loulé;
·         VIANA, Abel; FRANCO, Mário Lyster (1945): O espólio arqueológico de José Rosa Madeira, Separata da Revista Brotéria, vol. XLI, Lisboa




[1] A informação acerca deste elemento pétreo e local em si – para além da presente em VIANA, Abel; FRANCO, Mário Lyster (1945): O espólio arqueológico de José Rosa Madeira, Separata da revista Brotéria, vol. XLI, Lisboa e na ficha de sítio n.º 74 em GUERREIRO, Rui Manuel Gaspar Cortes (1999): Levantamento da Carta Arqueológica de Almodôvar Relatório de Estágio Profissional, vol. II, C.M.A. C.E.F.P.O. – foi dada inicialmente por um cidadão de origem francesa [que nós, para protecção da dita pessoa optamos por não mencionar aqui neste post]. Disse-nos que tinha visto há algum tempo atrás uma pedra com um tipo de espada gravada. Poderia ser uma estela de qualquer tipo (como arqueólogo e associativista julgamos ser nosso dever averiguar sempre estes informes, uma vez que o trabalho de arqueólogo não começa em campo e não termina em gabinete, mesmo que alguns deles se revelem posteriormente como uma mera “caça aos gambuzinos”).
[2] “Em 1629 a Câmara de Loulé recebe ordem régia para tombar as propriedades do concelho, o que se torna difícil por pegarem com as de gente poderosa – os Barretos e os Furtados de Mendonça. Demarcação controversa fez-se, em 1624, com o Morgado de Quarteira; com o comendador Lopo Furtado de Mendonça só em 1639.” In MAGALHÃES, Joaquim Romero (1993): O Algarve Económico 1600-1773, Editorial Estampa, Colecção Histórias de Portugal, n.º 3, p.150. Mas, não é somente com membros da aristocracia que o município de Loulé dirime os seus conflitos, com o clero, possuidor de terrenos, as questiúnculas também eram inevitáveis. “A partir de 1705 começam os conflitos da Câmara de Loulé com os padres gracianos, grilos e capuchos por causa dos gados que estes privilegiados metiam nos limites da vila.” Idem, p. 171.