sábado, 31 de maio de 2014

Fantasmas, vultos e sombras (III)



O “Avujão” do Pedrógão

Há algumas dezenas de anos atrás dizia-se que no Pedrógão existia um “Avujão[1]”. Ninguém sabia quem era e muitos tinham receio de o saber, pois pensavam tratar-se de uma qualquer aparição fantasmagórica.
O Tio Ameixinha gostava muito da pinga e andava sempre ébrio. Nessas alturas dizia aos outros na taberna, que ainda iria descobrir ele mesmo quem seria esse avujão, mas ninguém ligava muito ao que ele dizia.
Um dia, estando ele a beber – ou a fingir que bebia enquanto vazava o conteúdo do copo para o chão sem que os outros disso se apercebessem – saiu pouco depois da taberna, cambaleando teatralmente. Como se sabia mais ou menos qual a rota que o dito avujão costumava seguir, o Tio Ameixinha foi nessa direcção. Quando o avujão ia a passar por um determinado local o Tio Ameixinha foi directo a ele (segundo as suas palavras) e confrontou-o. Ninguém soube jamais o teor da conversa que encetou. E o que é certo também é que nunca se soube quem seria o dito avujão. O Tio Ameixinha nunca o disse, nem no leito de morte, quando com ele insistiam para o saber.
Testemunho de Madalena Afonso Borralho, 46 anos, nascida e criada em Pias (Serpa).


[1]Avujão” – Indivíduo (geralmente do sexo masculino) que, disfarçado de fantasma, com um lavatório em ferro à cabeça, lençol a cobri-lo e por vezes correntes atadas aos pés, utilizava assim este subterfúgio para ir ter com a amante ao coberto da escuridão.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Artífices (I)


O Artífice, Sr. Bento Rosa Ramalho. Foto: Maria João Marques


O Sr. Bento Rosa Ramalho, 60 anos, nascido e criado em Pias trabalha na agricultura.
Desde há dois anos a esta parte dedica-se, nos seus tempos livres, ao artesanato (miniaturas em madeira de alfaias, maquinaria agrícola, actividades artesanais, monumentos).
Perspectiva de miniatura de maquinaria agrícola. Foto: Maria João Marques
Vende todos estes trabalhos. O seu número de contacto para venda de trabalhos seus é o seguinte: 96 6845471.

domingo, 25 de maio de 2014

Alcunhas Alentejanas (X)

“Corta-rabos”

Alcunha que vem do tempo do Bisavô do Sr. José Rosa Bento, nascido e criado nas Neves (Beja) e também já falecido. A dita alcunha surgiu porque o seu Bisavô, todas as manhãs chegava sempre atrasado ao trabalho. Era como o Rabejador dos Forcados. E finalmente quando chegava, os compadres diziam: “Olha, lá vem o Corta-rabos !”.
Informante: Dona Catarina Conceição Maria Pedro, 76 anos, nascida em Mértola e vivendo em Beja.

sábado, 24 de maio de 2014

Fantasmas, vultos e sombras (II)

Existem sítios que propiciam o surgimento de relatos de aparições fantasmagóricas, uma vez que são locais onde o imaginário ligado à “última viagem”, o mundo dos mortos estará directamente ligado, nos nossos dias: cemitérios, orfanatos, hospitais, aeroportos[1] são alguns desses locais.
O Aeroporto de Beja / Base Aérea n.º 11 de Beja é um desses lugares. Nos seus terrenos surgiram vestígios de uma (ou mais) necrópole(s)[2] parcialmente intervencionada por colegas arqueólogos em 1968 e 1987. Só o facto de surgirem ossadas e enterramentos motivam o aparecimento de estórias relacionadas com os mesmos.
Não parece ser este o caso – devido aos pormenores descritos acerca dos episódios fantasmagóricos em si – que iremos relatar em seguida.
O informante deseja manter-se anónimo. Por tal facto respeitamos a sua vontade.

Fantasma do Alemão[3]

O Alemão era um militar, do tempo em que os alemães estiveram na base. Era ainda moço novo e, durante uma deslocação de mota no interior da base, numa curva da estrada (rotunda actual) o rapaz despistou-se e foi contra um sinal de trânsito que o cortou ao meio, matando-o. Dizem que o seu fantasma assombra o local.

Fantasma do Homem Alto com Chapéu

Na secção dos transportes ninguém gosta muito de lá ficar à noite. As portas (casas de banho, escritório) abrem e fecham sozinhas e escutam-se ruídos estranhos. Apagam as luzes ao sair e quase sempre estão acesas quando alguém entra nesse espaço na manhã seguinte.
À noite, quando os polícias militares fazem a ronda dizem que vêm um vulto de um homem alto, com chapéu a deambular pela pista da base. Quando se aproximam da dita silhueta para o questionar acerca dos motivos que o levam a estar naquele local, a mesma desaparece. Vários são os militares que ao fazerem a ronda avistam esta silhueta e a mesma história repete-se assim sucessivamente. Vão e vêm novos militares a contrato e a história continua, basicamente nos mesmos moldes. São sempre dois ou três a efectuarem a ronda, pois não lhes agrada a ideia de o fazer isoladamente, neste local específico.
Apenas de referir que a sombra em si costuma surgir junto/encostada a um sinal de Stop, mesmo ao pé da pista.


[1] Relatos de aparições de fantasmas em Bases Aéreas não são casos tão raros como isso. Tal é o caso do Labrador Preto que é avistado usualmente na Base Aérea da R.A.F. de Scampton (Reino Unido), ou ainda da mulher que se teria suicidado na Base Aérea de Nellis, localizada a Norte de Las Vegas (E.U.A.).
[2] Cemitério.
[3] A Base Aérea N.º 11 – BA11 situa-se nas proximidades da cidade de Beja, tendo sido criada em 1964 pela Portaria nº 20856 de 21 de outubro, data que passou a ser considerada como o "Dia da Unidade". A Base ocupa uma área de cerca de 800 hectares e foi construída com a finalidade de corresponder aos acordos bilaterais entre Portugal e a República Federal da Alemanha, no sentido de proporcionar facilidades de treino operacional à Força Aérea Alemã. Daí a relação com a nacionalidade descrita no episódio em questão.

Fantasmas, vultos e sombras (I)

Relato de informante que optou pelo anonimato:

Uma mulher vinha de carro com o filho, de Beja para Pias, ao chegarem junto à ponte do Guadiana viram um vulto feminino vestido de branco[1] junto a um caminho em terra batida que dava acesso a um Monte abandonado.
Após passarem a ponte do Guadiana voltaram para trás, com curiosidade, para ver se a viam novamente, mas já não a conseguiram ver. Ficaram na ideia que teria sido um fantasma. Tal observação ocorreu por volta das 2:00 da madrugada e há cerca de um ano atrás.


[1] Mulher de Branco

Este mito, em conjunto com o de “Bloody Mary”, aparece um pouco por todo o mundo, e a lenda diz que uma jovem mulher, num ato de desespero, devido aos maus tratos sofridos pelo marido, matou os seus filhos. Outra versão profere que, esta mata os filhos por eles a impedirem de se casar com o homem dos seus sonhos. Mas em ambas as lendas, depois de morrer, esta mulher transforma-se num espírito. A versão mais famosa é provavelmente a versão mexicana, em que, uma princesa indiana, Doña Luisa de Loveros, apaixona-se por um nobre mexicano chamado Don Nuno Montesclaros. A princesa estava muito apaixonada pelo nobre e teve dois filhos dele, mas o indivíduo recusou-se casar com ela. Quando Montesclaros a deixou e casou com outra mulher, Doña Luisa ficou enlouquecida com raiva e esfaqueou os dois filhos. A polícia encontrou-a a chorar, vagueando pelas ruas, com as roupas cobertas com sangue. Acusaram-na de infanticídio e mandaram-na para a prisão. Desde aí, se diz que o fantasma de La Llorona (“a mulher chorona”) vagueia o país à noite nas ruas com as suas roupas sangrentas, chorando pelo homicídio dos seus filhos.

Esta é uma versão moderna de uma lenda muito antiga, que possivelmente surgiu enquanto os conquistadores espanhóis tentavam conquistar o Rio Grande.

Existe outra versão nascida em Dallas em que, La Llorona é ligada a outro mito urbano, o “Passageiro Fantasma”. Nesta, durante a maioria das noites, o condutor dá boleia a uma mulher que está na rua e, ou esta desaparece quando passam por um cemitério ou dá uma morada de uma casa há muito tempo abandonada.

Existem mais algumas versões, desta vez vinda de White Rock Lake (Dallas), uma bela jovem vestida com uma camisa de dormir branca, coberta de sangue, que pede boleia, dá um endereço de uma morada e depois desaparece mesmo antes de chegar ao destino. Também vinda de White Rock Lake, diz-se que a mesma mulher aparece nas casas com os alpendres virados para o rio, pedindo para usar o telemóvel e depois desaparece deixando apenas uma poça de água e ecos de gritos.


terça-feira, 20 de maio de 2014

Alcunhas Alentejanas (IX)

Um esclarecimento quanto a esta temática se impõe. Respeitamos sempre a vontade dos informantes que queiram permanecer anónimos, ou sem fotografia a ilustrar a Alcunha em si, tendo em consideração que é uma “recolha difícil e delicada. Na verdade, identificar o «outro» com um nome falso, que é maioritariamente rejeitado, é tarefa delicada.”(RAMOS, 2003:6).
De igual modo temos verificado que – tal como era expectável – apenas os que possuem alcunhas aceitáveis, digamos, tais como “Borreguinho” ou “Penca”, mais facilmente «dão a cara» à fotografia[1], do que aqueles que possuem alcunhas jocosas ou consideradas pelos mesmos como aviltantes, tais como “Cagalhão” ou “Merda Crua”.
Também, por sabermos que “(…)o levantamento exaustivo das alcunhas do Alentejo ainda não está feito; para isso seria necessário um investimento significativo em recursos humanos e financeiros e em tempo.” (IDEM: 5) pretendemos assim prestar este modesto contributo também face a tais propósitos.
Sem mais considerandos, passamos à estampa um poema de Mestre Romão Moita Mariano (Poeta e Ferreiro de Pias – Serpa), dedicado às ditas Alcunhas Alentejanas. Registo de uma brincadeira feita para registar quando um indivíduo de Pias “O Choco”, ao efectuar melhorias à sua habitação, ter chamado para ajudar na dita obra, inadvertidamente, os “Cagas” (sem ofensa), seus conterrâneos.

ALCUNHAS DA NOSSA TERRA

O «Chôco» junta uns patacos
P’ra melhorar a casinha
Queria por nos quartos tacos
E tijoleira nos tectos
Se já não fosse p’ra ele
Era para os filhos ou netos

Para ver realizado
Aquele sonho tão belo
Um pedreiro foi contratado
Um vizinho ali ao lado
O Mestre «Caga Amarelo»

Quando a obra começou
Precisavam de um servente
O «Chôco» não hesitou
Pensou logo num parente
E logo sem mais desvendos
Foi ao Outeiro desmandado
E trouxe o «Caga Remendos»
Que estava desempregado.

Na construção da placa
A coisa ficou bicuda
A equipa era fraca
Precisavam de outra ajuda
O «Chôco» ouviu o recado
E abalou sem mais palavras
E foi buscar o cunhado
Que já estava reformado
O Tio Joaquim «Caga Favas»

Quando a placa ia a meio
O pocinho foi-se abaixo,
E o «Chôco» cheio de mágoa
Vendo o poço na sequeira
Mandou o Chico Cubaixo
À do Senhor Zé Madeira
P’ra mandar um bidom d’agua

Pediu pressa muita pressa
E o pedido foi aceite
Pois dai por um bocado
Dando volta na travessa
Com o bidom atisbado
Vinha o Luiz «Caga Azeite»

(tudo isto é real: Aconteceu quando o Chôco fez a reparação da sua casa em 1985).

Bibliografia consultada:
RAMOS, Francisco Martins; SILVA, Carlos Alberto da (2003): Tratado das Alcunhas Alentejanas, Edições Colibri


[1] Este registo fotográfico, voltamos a afirmar, com a autorização dos visados pelas alcunhas respectivas, é assim uma forma de manifestar a aceitação das ditas como uma brincadeira, sem maldade e com à vontade. Também cumpre o propósito de demonstrar quantitativamente quais as alcunhas mais facilmente aceites pelos próprios.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

“Aldeia Negra”

Em Pias, os mais antigos designavam a aldeia do Aguieiro como a “Aldeia Negra”, em tons de brincadeira. Diziam que os habitantes desse local seriam muito vaidosos e quando vinham a Pias, traziam os colarinhos das camisas brancos por fora e “sornegos” por dentro (devido ao suor). Por este motivo chamavam os de Pias aquela localidade, a “Aldeia Negra”.
Informante desejou manter o anonimato.

Paremia II

“São mais sujas e nojentas
As mãos de qualquer ladrão
Quando roubam as ferramentas
Com que os outros ganham o pão.”

In, MARIANO, Romão Moita [2002]: A malhar em ferro quente,
Arruda Editora, Arruda dos Vinhos, p. 41

Alcunhas Alentejanas (VIII)

“Bencateleiro” ou “Alentejano”

O Sr. António Joaquim Bibes Geadas, 55 anos, nascido em Bencatel e vivendo em Portimão a maior parte da sua vida possui duas alcunhas. Ambas estão ligadas à sua naturalidade.
Em Borba é conhecido por “Bencateleiro”, já em Portimão, é o “Alentejano”.

Alcunhas Alentejanas (VII)

“José Navalhão”

O Sr. José Avoila (avô do Sr. Paulo José Avoila Brincheiro, meu informante neste caso), nascido e criado em Pias (Serpa) ganhou a alcunha de “José Navalhão”.
Naqueles tempos qualquer motivo era passível de “guerreia”, fosse entre os desta aldeia que não gostavam que os da aldeia vizinha viessem “roubar” as moças para com elas casar, fossem os da rua de cima da aldeia que não podiam “invadir” o espaço territorial dos da rua de baixo e vice-versa. Quando o Sr. José Avoila, numa briga com outro indivíduo o esfaqueou, ganhou assim esta alcunha.

Alcunhas Alentejanas (VI)

“Gigante d’ A-do-Pinto”

O Sr. António Manuel Brincheiro (pai do Sr. Paulo José Avoila Brincheiro, meu informante neste caso), nascido n’ A-do-Pinto e vivendo em Pias (Serpa) a maior parte da sua vida, onde viria a falecer aos 72 anos de idade, ficou com a alcunha de “Gigante d’ A-do-Pinto”.
O Sr. Anselmo (natural de Ficalho) foi o responsável por tal “baptismo”, por assim dizer.
Como o Sr. António era de baixa estatura e natural d’ A-do-Pinto, assim ficou designado como "Gigante d’ A-do-Pinto".

Alcunhas Alentejanas (V)

“Brincheiro”

Por vezes o próprio nome de uma pessoa é assumido pelos restantes como alcunha, quando não o é.
Este é o caso do Sr. Paulo José Avoila Brincheiro, 43 anos, nascido e criado em Pias (Serpa).

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Alcunhas Alentejanas (IV)

“Domingos Careto”

Alcunha que vem por intermédio de um irmão do pai do Sr. Domingos Fonseca Borralho.
Este irmão foi para o Brasil e veio com a tez mais escurecida, semelhante a um “Careto”[1], daí a alcunha.
Testemunho de sua filha, Madalena Afonso Borralho, 46 anos, nascida e criada em Pias (Serpa).


[1] Caretos eram uns cachimbos em pau-preto, cuja extremidade terminava numa cabeça de figura antropomórfica de vetusta idade.

Alcunhas Alentejanas (III)

“José da Penca”

Sr. José Rogado (Foto: Maria João Marques)
Alcunha que vem da parte de um qualquer antepassado do lado do Pai e que teria tido a sua origem devido ao tamanho do nariz dessa pessoa.
Testemunho do Sr. José Manuel Cavaqueira Rogado, 48 anos, nascido e criado em Pias (Serpa).
[Vendedor de produtos hortícolas, criação e transformação de porco preto nacional].

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Fenómenos Luminosos (I)

De algum tempo a esta parte temos verificado de Norte a Sul do país que diversos tipos de fenómenos luminosos fazem parte do imaginário popular e folclore local.
Alguns já registamos e passamos ao prelo. Outros serão aqui seguidamente transcritos mais em bruto, seguindo-se, quiçá, interpretações mais reflectidas futuramente acerca de um maior número de casos/relatos.

“Os medos ancestrais, quer sejam do escuro, trovoadas, do além-túmulo ou do desconhecido, parecem ser inerentes à condição humana. Algum(uns) conto(s) popular(es), ligado(s) a fenómenos de luzes ou globos de luz, que ainda pervive(m) nos nossos dias parece(m) comprová-lo.
Desde a mais remota antiguidade que estas espécies de prodígios da mãe natureza são assinaladas. Não nos esqueçamos que, por exemplo, em época romana, cometas e estrelas poderiam augurar bons ou maus eventos que sucederiam algum tempo depois do seu registo. (…) Aliás, várias têm sido as tentativas de explicação para certo tipo de fenómenos imbuídos no folclore local, relacionáveis com outros de âmbitos regional, nacional e mesmo transfronteiriço em vários espaços geográficos no nosso planeta (…)”[1].

Em épocas medievais tais avistamentos destes fenómenos eram também relacionáveis com as presenças de figuras divinas ou demoníacas. Não raras vezes associavam-se estes avistamentos à observação de figuras altas, vestidas de branco e luminosas – que nos nossos dias e desde o «boom» do fenómeno o.v.n.i. são associados a manifestações de Et’s e que em épocas mais recuadas do passado histórico eram associadas a manifestações angelicais de enviados/mensageiros de uma qualquer divina entidade extraterrena.
Mas, sem mais considerandos, aqui fica o registo.

Relato de informante que optou pelo anonimato:
Há cerca de 40 anos atrás, na estrada entre Pias e Moura, de noite, algumas pessoas iam de carro de Pias para Moura e viram uma luz de tamanho indeterminado, que se tornava maior à medida que se aproximava do veículo em que seguiam. Quando chegou perto do dito, este, imobilizou-se. Davam ao motor de arranque e o carro não trabalhava. Quando a Luz finalmente se afastou o carro voltou a trabalhar.


[1] In VALENTE, Marco (2013): A Luz da Caniceira – um conto popular alentejano. In Aldraba. Boletim n.º 13 da Aldraba – Associação do Espaço e Património Popular. (s/l). pp.16-20

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Para que a Memória perdure Relatos de perseguições, tortura e morte ocorridas durante a Ditadura Fascista (I)

Recordo-me de escutar a seguinte frase há alguns anos atrás enquanto deambulava nos meus trabalhos de campo e recolhas por terras do centro de Portugal:
“Para que o Mal prevaleça, apenas é necessário que os Homens Bons nada façam.”
Algum tempo depois vim a saber que o seu autor, Edmund Burke, a teria utilizado por forma a criticar os excessos cometidos durante o período de terror a mando de Robespierre (também ele vítima dos seus próprios actos). Burke acreditava assim que a revolução francesa tinha sido um marco de ignorância e brutalidade, nomeadamente através da execução brutal de "homens bons" como Lavoisier.
Porque também em Portugal muitos foram os Homens Bons que tombaram lutando contra um regime ditatorial de inspiração fascista, estes posts serão assim dedicados a todos aqueles que usualmente a História tradicional não confere voz e às suas estórias de luta, perseguições, abusos, tortura e morte sofridos às mãos de um regime ditatorial implacável e castrador quer de corpos como de mentes, buscando assim confinar os portugueses à dócil e acéfala mentalidade seguidista e congénere tacanhez de espírito.
Mas, sem mais delongas, aqui fica o primeiro registo.

Testemunho do Sr. Francisco do Carmo Martins, ou “Chico Borreguinho”, 83 anos, nascido e criado em Pias (Serpa):

O pessoal do Algarve não tinha trabalho e vinham para o Alentejo fazer as ceifas e nós ficávamos sem trabalho. Juntaram-se algumas dezenas de pessoas (mais de sessenta) e fomos à Herdade dos Canivetes pedir trabalho e protestar contra essa situação.
Veio a Guarda e a Pide e prendeu-nos a todos cerca de quatro meses e meio em Caxias, interrogando-nos, sempre tentando saber quem eram os chefes responsáveis pela organização de tal protesto. Ocorreram tais factos cerca de 3 ou 4 anos antes do 25 de Abril de 1974.

Motivações para o registo. Um desabafo acerca de um contínuo desassossego.

O que me motiva para o registo de lendas, contos, mitos contemporâneos uns, com raízes centenárias outros, aqui, neste blog?
Sabemo-lo bem que nunca chegaremos aos pés daquele “Lavrador silencioso, sumido num dos vales sertanejos da Alta Estremadura…”, mas a ele, à sua leitura atenta o devemos, o facto de nos motivarmos para o registo, interpretação de contos, lendas, estórias e demais aspectos da nossa tradição oral. De tempos que se vão perdendo irremediavelmente, pois uma massa acéfala se tem formado nas últimas décadas, cujo único objectivo é correr festivais, comer e beber, jamais contestar e nada mais. Como os “trends” do mundo da economia, nada dura para sempre, a mutabilidade dos tempos é um facto, que sucede para o melhor e para o pior.
O intuito assim, é o de dar voz aos “fracos” e que são votados (pelos próprios familiares mais chegados por vezes) ao ostracismo. Porque hoje, neste mundo actual valorizam (algumas criaturas em lugares de chefia que desrespeitam todos os dias, cargo e eleitores) o “empreendedor” individual (não raras vezes narcisista, egoísta, falso), que pensa apenas em proveito próprio. Como o afirmava o Prof. Cláudio Torres há algum tempo atrás, mais ou menos com as seguintes palavras: «Infelizmente a escola actual ensina que os mais velhos são burros e ignorantes, que os seus conhecimentos de nada valem. E que para evoluir, os jovens têm de imigrar para as grandes cidades, libertando-se assim desses ensinamentos.»
E porque as Lendas desde tenra idade nos motivaram sempre também na nossa contínua busca das verdades, deixo aqui uma citação, recordação pessoal de quando vezes sem conta lemos a Lenda da Dama Pé de Cabra e a qual carinhosamente sempre guardei na minha memória:

“Vós os que não credes em bruxas, nem em almas penadas, nem nas tropelias de Satanás, assentai-vos aqui ao lar, bem juntos ao pé de mim, e contar-vos-ei a história de D. Diogo Lopes d’Haro, senhor de Biscaia. E não me digam no fim:
«Não pode ser.» Pois eu sei cá inventar coisas dessas?
Se a conto, é porque a li num livro muito velho, quase tão velho como o nosso Portugal.
E o autor do livro velho leu-a algures ou ouviu-a contar, que é o mesmo, a algum jogral em seus cantares.
É uma tradição veneranda, e quem descrê das tradições lá irá para onde o pagar.
Juro-vos que, se me negais esta certíssima história, sois dez vezes mais descridos que S. Tomé antes de ser grande santo. E não sei se eu estarei de ânimo de perdoar-vos, como Cristo lhe perdoou.
Silêncio profundíssimo, porque vou principiar (…)”

Alexandre Herculano, As Lendas e Narrativas, A Dama Pé de Cabra
(Rimance de um jogral, Século XI)