Lenda do Homem Pássaro
Em antigos cultos celtas, o fenómeno da metempsicose encontra-se sempre ou
quase sempre presente. Através deste fenómeno, uma alma transmigraria de um
corpo para outro, mesmo que de espécies diversas, uma reencarnação.
Sabemos, pelas descrições de Júlio César, na sua obra ímpar acerca dos
Celtas da Gália «De Bello Gallica»,
Livro VI, XIV, no qual o tema central da religião desses povos celtas era a
metempsicose (a possibilidade da alma humana reencarnar em outros seres animais
e vegetais).
Na ida da alma deste mundo para o outro, sabemos através de Tiberius Catius
Asconius Silius Italicus – ao contrário dos romanos que não concebiam sequer a
ideia de um corpo insepulto – que para os povos celtas as aves de rapina
desempenhavam um papel primordial: «(...) para esses homens [celtas] a morte em
batalha é gloriosa; consideram um crime enterrar-se o corpo de um destes
guerreiros, porque acreditam que a sua alma sobe aos deuses do céu, se o seu
corpo ficar exposto no campo de batalha para ser devorado pelas aves de rapina»
(Punica, 3 340-343). E ainda alguns séculos mais tarde Claudius Aeianus (Séc.
II-III d.C.) afirmava: «àqueles que perdiam as suas vidas em combate eles
consideravam-nos como nobres, heroicos e cheios de bravura, lançando os seus
corpos aos abutres acreditando que esta ave era sagrada» (De Natur. Anim.
X.22).
Em várias partes do Mundo, lendas e mitos acerca dos Homens Pássaro podem
ser encontradas, como por exemplo este registo do aluno de Machanga, Mário
Domingos Gimo, recolhido a 29 de Junho de 2018:
“Há muito tempo havia três (3) homens que vieram na casa de três meninas,
numa zona em que quando chegaram numa casa queriam casar e foram aceites, mas
os vizinhos sabiam que não eram bons homens.
E aquelas mulheres aceitaram casar-se e levaram as esposas e foram e quando
ficaram os vizinhos começaram a explicar aos pais daquelas meninas que não eram
aqueles bons homens, porque quando iam à pesca pegavam o peixe e começavam a
tirar os olhos e ao pegar primeiro cantavam e mudavam, ficavam passarinhos e
começavam a tirar os olhos, mas os pais delas não acreditaram.
E um dia, os irmãos foram visitar as manas e quando chegaram foram
recebidos bem, comeram e os cunhados foram pescar e vieram com peixes que não
tinham olhos e os irmãos das esposas desconfiaram e pediram aos cunhados que
queriam ir pescar com eles e os cunhados aceitaram e quando foram começaram a
pescar e não pegavam nada e começaram a cantar aquela música com voz alta e mudaram,
ficaram com forma de pássaro e foram para baixo de água e começaram a apanhar
peixe e a por na canoa, tiravam os olhos e mudaram novamente de forma. Foi aí
que os irmãos acreditaram naqueles viinhos e seguiram, foram ditos que não eram
pessoas e ficaram sem as esposas.”
[Informante Luis Calamoni, 46 anos]
E ainda outro registro, do aluno João Jeremias Charles, recolhido a 26 de
Junho de 2018:
“Era uma vez, um senhor que era pescador.
Este senhor casou-se com uma menina muito bonita e, como sempre, traia-lhe
os melhores peixes do mangal. Num certo dia, quando o pescador se preparava
para ir á pesca, o irmão mais novo da menina, pediu que fossem juntos. O pescador
não negou, embora isso fosse para si um sacrificio. Chegado o momento da
partida, o pescador disse ao cunhado.
- Lá no mangal, há muitas coisas que muitas vezes acontecem e se acontecer
alguma coisa não podes assustar-te e não deves contar à família.
- O cunhado concordou.
Ao chegar no mangal, o pescador fe as suas manias e não conseguiu nenhum
peixe, e o pescador cantou então a sua música:
«Maya mbererua wê, ku funua ngozi-chiri, mbereuia wê».
O pescador continuava a cantar até que se transformou em grande passarinho,
e mergulhou, voltando com muitos peixes.
O pequeno cunhado quase desmaiava de susto, mas não tardou a vencer o
susto.
Ao regressar a casa, a esposa serviu-lhe a água para o banho. depois ao
anoitecer a família reuniu-se a volta da fogueira, o cunhado pediu permissão à
irmã para cantar uma canção.
Cantando o cunhado, o marido pediu para que parasse de cantar, só que o
menino cantou mais alto até que o pescador, transformando-se num grande pássaro
e acabou por fugir.”
Pelo mundo temos ainda - e apenas
para dar mais alguns exemplos – os Tengu (Japão):
“No passado, os tengus eram tidos como forças perigosas da natureza, como a
maioria das criaturas sobrenaturais. Durante o Período Heian (794-1185), houve
histórias de tengus causando diversos problemas a monges budistas, por vees
carregando-os até um lugar distante e largando-is lá, ou enganando e possuindo
pessoas.
A partir do período Kamakura (1185-1333), surgiram algumas variantes da
lenda dividindo os tengus entre kotengus, os tengus mais próximos de pássaros
que atacam humanos e até os levam à loucura, e os daitengus, os tengus de aparência
mais humana que são tidos como sábios, poderosos e, de certa forma, até mais
perigosos.
Foi um tengu quem ensinou a arte da espada a Minamoto no Yoshitsune, que
veio a se tornar um dos samurais mais famosos do Japão. A partir de então, os
tengus passaram a ser associados a grandes abilidades guerreiras.
Com o passar do tempo, embora tenham mantido seu ar ameaçador e até bélico,
eles coemçaram a adquirir uma natureza mais benéfica. Hoje, também são
entendidos como guardiões das montanhas, seu habitat natural.”[2]
Na Amazônia temos ainda a “Lenda do Uirapuru” ou na Polinésia nas ilhas
Motuiti e Motunui também a "Lenda do Homem Pássaro".
Voltaremos a esta questão em breve.
Por enquanto ficam os dois registos inéditos recolhidos em Moçambique pelos
alunos da Escola de Santa Teresinha do Menino Jesus de Zivava, Machanga.
Agradecemos aos Professores envolvidos nestas recolhas: Castigo José, Herculano
António Alferes e Bernete Castigo. Ao Director da Missão, Dr. Domingos Júnior e
ao Director da Esmabama Dr. Fabrizio Giovanbatista Graglia, fica também o nosso
sincero agradecimento pela possibilidade que nos deram de efectuar esta
recolha, que continua a decorrer no presente momento, com centenas de histórias
já recolhidas. No futuro existirão boas novidades quanto a estas temáticas. Estamos
em crer certamente.
Bibliografia consultada:
·
BEIGI,
Yasaman Hassan; VALENTE, Marco
(2016): Animal depictions on inedited
archaeological artifacts from Pias (Serpa, Beja, Portugal), In Arnava – refereed jornal, Vol.
V, nº 1, pp. 64-78;
·
MAÇARICO, Luís F.; ISABEL,
Ana; MARQUES, Maria João; VALENTE, Marco (no prelo): Povo de Pias – Identidade e Imaginário
Popular;
·
“Metempsychosis” – Merriam-Webster Dictionary
·
VALENTE, Marco (no prelo): Lendas e Mitos Rurais e Urbanos de Moçambique (um Mundo em extinção)?
·
https://tocadofenrir.wordpress.com/2017/04/27/tengu-do-folclore-japones/
[consultado online a 11-05-2019]
[1] Todos estes registou lendários
estão a ser recolhidos, inventariados, digitalizados e tratados, para cumprir
com uma série de objectivos. Edição de livros, artigos, conferências e
apresentações. Criação de Bases de Dados locais e na Grécia em parceria com uma
Universidade Grega, em projecto a submeter à União Europeia brevemente.
[2] In https://tocadofenrir.wordpress.com/2017/04/27/tengu-do-folclore-japones/
[consultado online a 11-05-2019]
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