"Lenda da Passadinha"
Informante: José Sardinha |
Um cavaleiro que um dia ia a passar por um
ribeiro foi atacado por uma grande cobra[1].
Pediu ajuda a Nossa Senhora e ela apareceu-lhe
com o menino ao colo e a cobra com medo fugiu[2].
O cavaleiro em agradecimento quis construir uma
capela[3].
Quando começaram a construir num local baixo, no
dia seguinte encontrava-se tudo derrubado no chão[4].
Então tiveram de construir a dita capela num
sítio mais elevado.
Nesse ribeiro há um afloramento rochoso, com uma
espécie de sela (que teria sido do cavaleiro, local onde os miúdos antigamente
iam brincar), com a gravura de um pé (eventual podomorfo, que seria pela
tradição do Menino Jesus) e de uma ferradura (que seria igualmente pela
tradição, do cavalo que o cavaleiro montava)[5].
Chegaram a ocorrer disputas, há algumas décadas
atrás, pela posse “espiritual” desta Capela, entre as gentes de Selmes
(Vidigueira) e as gentes de Baleizão (Beja).
[1] Os cultos ofiolátricos são, em épocas
celtas por exemplo, símbolos de uma ligação existente entre todos os seres vivos.
Júlio César descreve, para os celtas da Gália, que o tema central da sua
religião era a metempsicose (a possibilidade da alma humana reencarnar em
outros seres animais e vegetais). Em Dorset, no Reino Unido, arqueólogos
descobriram enterramentos de numerosos animais híbridos. Milles Russel
(co-director da escavação), teria declarado a imprensa que as combinações de
diferentes partes de animais teriam sido localizados em fossos com 2 a 3 metros
de profundidade utilizados para guardar mantimentos e outros tipos de
mantimentos debaixo das entradas das casas. Uma disposição particularmente
estranha de ossos de animais, também envolveu um esqueleto humano. Uma jovem
mulher parece ter sido vítima de sacrifício (com a indicação de que a sua
garganta provavelmente teria sido cortada) e foi então enterrada numa “cama” especialmente
executada com ossos de ovelhas, cães e cavalos. Significativamente, essas
ossadas de animais tinham sido deliberadamente escolhidas para espelhar os ossos
da mulher morta. Também poderia indicar que os antigos britânicos possuíam
crenças ou mitos relacionados com animais híbridos, da mesma forma que os
gregos. A maioria das civilizações ancestrais têm animais híbridos nas suas
respectivas mitologias. E, ainda que os celtas não tenham deixado nenhuma
evidência escrita acerca disso, as experiências híbridas com ossos de cavalos e
vacas poderiam sugerir a existência de uma divindade celta com essas
características.
Já o antropólogo Julio Cola Alberich (Cultos primitivos de Marruecos,
Madrid, Instituto de Estudios Africanos del CSIC, 1954, p. 50) afirmava o
seguinte, relativamente aos cultos ofiolátricos no Norte de África: “Para
establecer su génesis, se hace preciso reconocer el estado de espiritu del
primitivo ante una especie animal tan extraña en sus particularidades como el ofídio.
A su vista, experimenta una concreta sensación de pavor y repulsión, una
sensacion fuera de lo normal, que le conduce a la admiración.” Este ombre
primitivo relaciona la serpiente com una serie de hechos a los que le conduce
su observación directa de la Naturaleza: «a consecuencia de ello, há llegado a
adquirir un conocimiento, primeramente muy oscuro, de algunos fenomenos relacionados
com la vida del reptil – como su muda periódica, que le puede sugerir la idea de
renovacion periódica y perpetua de la vida(…) La analogia, que para Preuss es
casi la única fuente de la magia, halla aqui una evidente intervención. En ella
puede buscarse las raíces de la primitiva ofiolatria».
[2] A hostilidade entre a Mulher e a Serpente
já surge em textos bíblicos, nomeadamente do Antigo Testamento. Em Génesis
3,15: “Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a
linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás no calcanhar.”
Trata-se de um diálogo entre Deus e a serpente, depois do pecado de Adão e Eva
no Paraíso. É a mulher que persegue e esmaga a cabeça da serpente.
Exegeticamente, esse versículo parte da constatação que existe uma profunda
hostilidade entre a humanidade e a serpente. É fundamental, notar a presença de
uma vitória final da Humanidade. No texto hebraico essa vitória virá através da
linhagem da mulher. Dessa forma é estimulada a interpretação messiânica já
presente na tradição judaica antiga e, depois, nos padres da Igreja. E,
juntamente com o Messias, também a sua mãe é assim implicada, nascendo a
interpretação mariânica: Maria que esmaga a cabeça da serpente.
[3] O facto de alguém cristianizado querer
construir uma capela/igreja/mosteiro após uma vitória é um tema muito comum na
imagética cristã (p.ex. Mosteiro da Batalha).
[4] Este tema também é muito comum, só para citar
dois da imensidão de exemplos existentes, isto só relativamente ao caso
português: Em Mirandela, numa localidade apelidada de Romeu, na Horta de Nossa
Senhora, no Lugar de Vale de Couço, dizia-se que tinha sido ali que teria
aparecido a imagem de Nossa Senhora de Jerusalém de Romeu, onde lhe erigiram
uma Capela. Mas Ela, de noite, fugiu para o local da aparição, até que, por
último, tantas vezes a levaram que lá se resignou a ficar na Capela [esta
situação não costuma ser usual, geralmente Nossa Senhora, ou Santa/Santo
costumam fazer prevalecer a sua vontade]. Igualmente em Santa Bárbara, Vale de
Prados de Ledra, apareceu a Senhora, que o povo levou para as Múrias. Mas de
noite fugia para as ruínas, até que, tantas vezes a levaram que, por último, lá
ficou. [Através destas alegorias as populações encontravam muitas das vezes
explicações, no seu entendimento, para a existência de ruínas antigas próximas das
suas então actuais localidades].
[5] A arte rupestre, geralmente surgida em
locais de culto, calendários agrícolas, etc encontra assim este tipo de explicação
na mente das pessoas das localidades mais próximas, pois é a explicação mais
plausível aos seus olhos e experiência de vida, também ao nível da
religiosidade, que professem na altura.
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